sexta-feira, 8 de junho de 2007

Ao longe

Ao longe,
a vela do barco já rasgou o céu
e o casco continua
abrindo o mar
sempre que passa.

Aqui
sobrou um corpo na janela.
Inerme ainda e ainda por abrir.
E todavia trespassado pelas espadas do silêncio.

Mas do veleiro
ninguém lhe soma as feridas:
que veludos se passearam
pelos punhais dos teus dedos?

De quem

De quem
a arma branca
que rasgou o silêncio?

O medo
e a tua boca
têm o mesmo gume.

Sei o rio

Sei o rio
lutando contra a ponte,
a ponte
contra os caminhos.

Sei a ponte erguida
sobre o rio, ferindo o rio.
Sei os caminhos, ferido pela desordem
um
contra o outro.

Onde nos leva hoje a ponte
que o rio ontem não levava?

Lembrei-me de ti.sem querer.

Lembrei-me de ti. sem querer.
qualquer coisa como o sol e o
mar dormindo juntos. uma tarde
de outono ou de primavera indefinida.
A areia estava macia e húmida. não
havia corpos na praia.apenas
restos fluidos de passos. vespas.
às vezes gaivotas, água e pedras:
uma garrafa verde.

Um comboio seguia os cabelos
de espuma. para um lugar
qualquer. talvez estoril morno.
em outubro. no ar e no silêncio
algumas feridas. saravam.

MARIA HELENA SALGADO (Maria do Rosário Pedreira)

Maria Helena Salgado foi o pseudónimo utilizado por Maria do Rosário Pedreira quando foi publicado, em 1989, na colecção poesia contemporânea das Publicações FOLHA D'HERA, o seu livro "Água das Pedras". A autora tem desenvolvido para além de intensa actividade no domínio da literatura, quer como poeta, ficcionista ou na área da literatura juvenil, um percurso reconhecido enquanto editora, designadamente directora literária na Gradiva e directora de publicações da Sociedade Portugal-Frankfurt 97.

É do livro "Agua das Pedras" que seleccionamos alguns poemas para a nossa oficina de poetas, baseada na actividade editorial das Publicações FOLHA D'HERA.

sábado, 2 de junho de 2007

amira o que se diz vale tão pouco

amira o que se diz vale tão pouco
e o que se sente está tão resguardado
por hábitos contratos concessões
Os gestos são tão inacabados

que os beijos apenas se imaginam
e os passos se afastam bifurcados.

Um pouco acima da fome que nos rói

um pouco acima da fome que nos rói
o coração desordenado é um cavalo
que abranda a pouco e pouco o seu galope
enquanto vem à boca um gosto amargo

a batalha perdida dói no peito
como uma corça tropeçando ferida
Não nos resta senão retomar força
para as novas batalhas desta vida

Nem tem outro sentido o dia alto
elevando-se mais Nem o amor
se confina à miséria em que vivemos
Cantamos e lutamos com ardor

neste espaço e tempo de que somos

À sombra de um violino

À sombra de um violino
dançaram até suar
Não. Não era o destino
nas alamedas do amor
Apenas se advinhava
toda a festa de um encontro.
O resto que se calava
(como o silêncio de um hino)
era o tempo que passava
na sombra do violino.

Prosou tão bem quanto pôde

Prosou tão bem quanto pôde
Encheu os ares de perfumes
e só parou quando soube
que tinha chegado aos cumes,

acerados como gumes.

Arriscou. Apenas disse
o que sabia de cor,
pois tudo o que ele fizesse
relembraria o amor

do amor que se predisse.

Ergueu então sua vara
e vazou os seus alforges
nessa viagem tão rara
em que persegues e foges.

Ontem, amanhã e hoje.

Quase como água correndo

Quase como água correndo
o tempo corre na fala,
e diz da nossa justiça
onde a justiça nos cala.
É uma força muito antiga,
- esta de pôr na cantiga
o que cá dentro nos rala.

Tem a canção o seu tempo,
e quem a faz o seu canto.
O tempo tem seus meandros
que nos requebram o canto.
Mas podemos ir dizendo
que a vida toma outro gosto
quando a gente vai cantando.

EU NÃO INVENTEI NADA

Eu não inventei nada.

Encontrei tudo escrito
nos caroços dos frutos,
no miolo do pão.

Nem sequer as palavras,
- nem tão pouco estes versos,
(pelo pouco que são).

Murmúrio de ribeiros
que me vem aos ouvidos
e depois se mistura
na canção.

MANUEL CORREIA

NOTA BIOGRÁFICA

Manuel Correia nasceu em Almada em 24 de setembro de 1949. A partir de 1971 escreveu alguns textos (poéticos e outros) que vieram a ser utilizados pelo grupo de teatro José Magro, por Luís Cília e José Manuel Osório. "Passos Bifurcados", o seu primeiro livro, ganhou o Prémio de Poesia "Ano Internacional da Paz" em 1986, atribuído por um júri constituído pelos escritores António Torrado, em representação da Sociedade Portuguesa e Autores, António Modesto Navarro, do Conselho Português para a Paz e Cooperação, José Jorge Letria, da Associação Portuguesa de Escritores e Eufrázio Filipe e Arlindo Mota, da Associação dos Municípios do Distrito de Setúbal, promotora do prémio.

O livro "Passos Bifurcados" foi editado em 1988 pelas Publicações "FOLHA D'HERA", na sua colecção de Poesia Contemporânea, sob a direcção do poeta Arlindo Mota e do designer José Teófilo Duarte. São dele os poemas que escolhemos e transcrevemos.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

AL BERTO

ANTES QUE O RIO ESQUEÇA...


Olhar atentamente a civilização que nos deixaram.
Dantes podíamos virar costas à terra com a certeza de que as eiras estavam cheias de grão. Hoje apenas podemos sonhar com as eiras que não veremos nunca.
Mas as máquinas vieram para talhar a cidade que vem e o falso ouro contaminou a terra.

Tentaremos esquecer a morte que se insinua em permanência e que de tão presente já não sentimos o cheiro. Refina a morte das aves, esquece-se a vida dos peixes, morrem as árvores, degrada-se a vida dos homens.

Na memória doem os sinais dos bosques ceifados, as dunas arrasadas e algumas casas abandonadas. A memória é hoje uma ferida que lateja ao fundo da insónia.

Escavemos o chão, procuraremos essas raízes em pedra cinzelada, objectos da vida simples de outros povos. Preciosas navegações, procuraremos a velha dança à roda do mastro. Olhamos as nossas minúsculas embarcações, semelhantes a beijos que nos percorrem de felicidade.

Olhamos o mar, o espaço desses navios negros que nos escondem a linha do horizonte. No coração nada secou, nem possuímos o desastre dentro dos sonhos. A vida preciosa de vivíssimas memórias.

Com este corpo frágil e magoado, procuramos preservar a nossa memória colectiva da voragem do tempo e do abandono dos homens.»



Prosa poética de Alberto Pidwel (Al Berto) para um video sobre Arqueologia Naval da Margem Sul, escrito em 1985, transcrito por amota

sábado, 31 de março de 2007

Antologia Breve 16

PRESENÇA

Escalámos obscuros portos,
Assinaladas rotas, pesqueiros revisitados
Nas noites de viagens interditas.
No começo foi assim. Com o tempo
Retomamos circunspectos a tonalidade.
O arco-íris - dirás? Ainda não.
Serpenteamos desejos, reconhecemos
amantes
- e tu, em todo o caso, lá estarás -
Por antecipação.

ANTOLOGIA BREVE 15

PERCURSO PERCORRIDO

Foram anos de procura,
Sem curso de marinhagem,
Nem leme ou rumo traçado,
Sem a menor equipagem.

Foram destinos aceites,
Sem uma prévia demão,
Horizontes encobertos
Sem perceber a razão

Foram temas de romance,
E heróis mal preparados,
Cavalgadas sem destino,
De antemão fracassadas.

ANTOLOGIA BREVE 14

DESEJO

Apetitoso o fruto que desejo,
Inominado, fresco, sedutor:
Prouvera fosse o tempo das cerejas,
Soubera ser o tempo do calor.
Das giestas não falo, porque sei
O perfume agreste que despertam.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Antologia Breve 13

CANTO VIAJEIRO V

Por fim, sentei-me num canto
-entre rio e outro rio,
entre mar e outro mar-
cansado de correr tanto,
indeciso no lugar,
aí fiquei até hoje.

Antologia Breve 12

CANTO VIAJEIRO IV

Dobrei o cabo da esperança,
fundei o meu universo,
temi o vento ea bonança.

Não fui quixote, nem pança,
para tal, faltou-me o jeito.

Antologia Breve 11

CANTO VIAJEIRO III

Percorri, se é tudo
o que posso imaginar,
descobri novas paragens,
por cada nesga do mar,
viajei por latitudes,
ainda por localizar.

Antologia Breve 10

CANTO VIAJEIRO II

Como um vulgar marinheiro,
inventei-me num porão,
percorrendo o mundo inteiro.

Os portos foram surgindo,
mas nem por isso mais perto
me encontrei do destino,
como se fosse sumindo.

Antologia Breve 9

Canto Viajeiro 1

Foi no tojo das palavras,
no rigor da intenção,
que rebentei as amarras,
penetrando no que são.

Cortei as asas do tempo,
perfumei o meu olhar,
e adormeci ao relento,
sem ter pressa de acordar.

Antologia Breve 8

Meditação I (No dia Mundial da Poesia 2007)

Quem controla o desejo, a emoção
ou a ternura?
A paleta, responde o pintor.
A palavra, atalha o poeta.
Juntos, distribuem a luz
que inunda de cor o planeta

quarta-feira, 14 de março de 2007

Antologia Breve 7

ENTRE O VAZIO E A COR

Caminharás entre os astros, deambulando
entre o vazio e a cor, procurando
o fogo nos seixos húmidos do mar.

Meditarás os antigos: a ampulheta
desvenda o tempo, que circunscreve,
secretamente, deixando um rasto de luz fria.

É isto -Cibele - o padoroxo cruel
dos sentimentos: o poder do amor
gerando o seu contrário, e o contrário
imobilizado por pudor.

Antologia Breve 6

Nesses Lugares Eu Teço

Os sentimentos, Cibele, são paisagens,
húmus, campos de semeadura, se contêm
a natureza honesta do granito.

Nesses lugares eu teço, sem rebuço de
olhares. As mãos ganham, então, um
sentido mágico, entrelaçam-se, procuram
o âmago do tempo nas profundezas
da terra, cruzam-se e descruzam-se
desordenadamente.

Nesses lugares, os olhos apelam
ao sonho, à viagem, à maresia
dos sentidos, assim o luar liberte
o iodo, agreste perfume das marés.

Antologia Breve 5

Cabo da Esperança

Quanto custou dobrar o Cabo,
Assegurar os mantimentos
E o ânimo dos Homens?
País de marinheiros, de aventuras,
Ninguém pergunta quanto custa
Dobrar o cabo da ternura.

Dobrar o Cabo, sem perder a esperança,
E ao sabor do vento navegar,
Indiferente à tempestade ou à bonança,
Ser uma ilha entre o azul e o mar.

domingo, 11 de março de 2007

Antologia Breve 4

ERA UM TEMPO

Onde os búzios que em tudo pareciam
O regresso ao tempo das sereias?
Onde o fogo das mãos que se queimavam
Junto aos corpos que quase enlouqueciam?

Onde o vento cortando inutilmente
As arestas que cedo os revestiam?
Onde a lua rasgada de desejos,
Eclipse de silêncio por momentos?

Era um tempo, alento da manhã,
Em que as árvores cobriam prontamente
Teus seios, vestígios de romã.

Antologia Breve 3

OS FRUTOS PROMETIDOS

Seguros são os frutos prometidos,
Que colherás de tanto semeares,
Entre as searas abertas pelos dedos,
Que o vento ondulará quando quiseres.

Antologia Breve 2

CABO DA BOA ESPERANÇA

Quantro custou dobrar o Cabo,
Assegurar os mantimentos
E o ânimo dos homens?
País de marinheiros, de aventuras,
Ninguém pergunta quanto custa
Dobrar o cabo da ternura.

Dobrar o Cabo, sem perder a esperança
E ao sabor do vento navegar,
Indiferente à tempestade ou à bonança,
Ser uma ilha entre o azul e o mar.

Antologia Breve

MITO PRIMORDIAL

Do rosto emergiu uma flor,
A flor desabrochou como queria,
Assim nasceu o Amor,
E dele a Noite e o Dia.

CITAÇÃO

Do prefácio escrito por José Jorge Letria para o livro "A Seda das Palavras":

"A poesia de Arlindo Mota, com a qual tomei contacto pela primeira vez há vinte anos, é um permanente exercício de contenção e de rigor formal ao qual não são alheios o gosto pelo recurso à metrificação clássica e a liminar recusa do esbanjamento e do ornamento vocabular.

Estamos, pois, perante uma poesia que tenta cumprir-se na essencialidade do que, ficando dito, deixa tudo o mais por pressentir e por intuir. É nesse sentido, uma poesia de maturidade."

sexta-feira, 9 de março de 2007

Arlindo Mota - Poeta

Da sua obra poética destaca-se: "Canto Viageiro" (1981. com design de josé Cerqueira) ; "Incertos Dias" (1986; ilustrações e grafismo de josé Teópfilo Duarte); "Marca D'Água" (1995; concepção gráfica de Edgar Melitão); "A Seda das Palavras" (Capa e design gráfico de Ivone Ralha).
Volúpia de mil desejos,
Perfume de água e sal,
Em ti deposito um beijo
E a luz, que é natural.
arlindo mota
a seda das palavras